Meu Funcionamento no Espectro Autista: Singularidade, Desafios e Autoconhecimento
- Neuropsicológa Aline Vicente
- 1 de abr.
- 7 min de leitura
Abril: Um Mês para Compartilhar e Conscientizar
Olá, seja bem-vindo(a) ao meu blog. Este mês é especial: abril é dedicado à conscientização do Transtorno do Espectro Autista (TEA), e quero honrar essa data compartilhando minha própria vivência como autista. Antes de tudo, é essencial reforçar: cada pessoa no espectro é única. Nossas histórias, genes, comorbidades e trajetórias são singulares. Mesmo que dois autistas compartilhem critérios diagnósticos, somos diferentes em essência. É sobre essa singularidade que falarei nesta série de posts.
Quem Sou Eu: Uma História de Neurodivergência
Bom, sou autista nível 1 de suporte, sou TDAH predominantemente desatenta, tenho altas habilidades, superdotação e possuo transtornos de aprendizagem. Então, falando sobre mim, é importante que você saiba um pouco sobre a minha história de vida: quando minha mãe engravidou, meu pai tinha 60 anos e ela, 22 anos. Sempre fui muito mais parecida com meu pai do que com minha mãe no que diz respeito ao comportamento social, as manias e a capacidade intelectual. Fui criada pela minha mãe, que era evangélica; cresci dormindo em banco de igreja, e por isso hoje a espiritualidade é tão forte em mim embora não faça mais parte de nenhuma igreja, mantenho a espiritualidade tão intensamente quanto antes. Tenho dois irmãos, o que me fez amadurecer desde cedo e aprender sobre a responsabilidade de cuidar. Quando pergunto à minha mãe como fui quando criança, ela diz: “Você sempre foi muito inteligente, obediente, com 7 anos já preparava a mesa do café, ajudava a cuidar dos seus irmãos, teve muitas dificuldades na escola para aprender a ler e foi muito agressiva com seus colegas, chegando a fugir da escola.“

Memória Episódica, Armários e Dificuldades Escolares
” A memória de minha mãe está certa; lembro disso, inclusive, tenho uma excelente memória episódica, algo bem comum no cérebro autista, com uma capacidade surpreendente de recordar detalhes. Lembro quando engatinhava, tomava mamadeira na cama, e percebia que a palavra de um adulto era como uma regra a ser cumprida – nunca falei um palavrão ou desobedeci os mais velhos, pois na minha cabeça isso era uma regra de honra, influenciada pelos ensinamentos bíblicos, e esse aspecto se mantém até hoje. Com 2 a 3 anos já andava, gostava de me esconder dentro dos armários, nos aéreos; escalava grades e subia na parte de cima dos armários, gostava daqueles cantinhos, e fiz isso por muito tempo – até hoje, de forma diferente. Tive dificuldade em me adaptar na escola; a primeira vez que fui à creche foi um terror, cheguei a me esconder no armário da escola. No ensino fundamental, tive dificuldade em aprender a ler e escrever e até mesmo em lidar com números, conseguindo, aos 10 anos, entender um pouco sobre eles. Tive muitos problemas comportamentais na escola – batia muito em outras crianças, e vou explicar o porquê: eu batia em quem zombava de mim ou de outras pessoas, sofria muito bullying e, como não conseguia expressar minha defesa em palavras, batia mesmo sem achar aquilo certo. Eu sabia que estava errada e aquilo me incomodava. Na 6ª série, parei de estudar, não aguentava mais sofrer bullying; cheguei a ser agredida em sala de aula por um professor por ser “desatenta” e, depois disso, parei de ir à escola sem explicar o motivo. Curiosamente, mesmo tendo sido agredida por um professor – alguém de quem eu amava a disciplina e que me encantava por falar de história –, eu absorvia tudo o que ele dizia, mesmo sendo desatenta.
Rotinas, Crises e a Menina do Morro
Sempre gostei de organizar meu dia; desde criança, organizava minhas brincadeiras. Lembro que, com 8 anos, morava em um sítio com minha avó e, certa vez, ela trouxe uma menina para brincar comigo, pois não havia outras crianças por perto. Naquele dia, tive uma crise terrível, pois eu havia organizado todo o meu dia para construir uma vara de pescar e uma cabana, e não queria ter ninguém junto comigo para fazer isso na minha cabeça, tudo já estava planejado e não cabia outra pessoa ali. Quando vi a menina, corri para um morro atrás de casa, comecei a chorar e implorar para que ela fosse embora, e fiquei assim por um bom tempo, só me acalmando depois que ela se foi. Nessa época, estava em uma sala diferente, diziam que era uma sala de crianças especiais e que eu era especial; não conseguia fazer amigos na escola por falta de iniciativa. Houve uma menina que usava cadeira de rodas e, embora gostasse dela, não conseguíamos nos comunicar ela não conseguia falar, era não verbal, mas conseguimos nos comunicar com movimentos das mãos; lembro de ajudá-la e sentar ao seu lado. As crianças com quem mais brincava eram minhas primas, mas sempre do meu jeito desajeitado, diferente; nunca me encaixei completamente. Minha preferência sempre foi ficar sozinha, do meu jeito. Desde criança, tive dificuldade em ter noção do perigo; brincava com cobras ou qualquer outro animal, certa vez dormi debaixo de casa com os cachorros durante a soneca da tarde eu devia ter uns 9 anos e meus braços e mãos ficaram cheios de bichinhos, algo que para mim foi terrível, pois até hoje lembro com horror da cena de minhas mãos e pés cheios de buracos. Na infância, meus maiores prejuízos foram na escola, na socialização e nos padrões restritos de rotina.

Adolescência: Hiperfocos, Arte e Solidão
Na adolescência, essas dificuldades se intensificaram, desenvolvendo problemas na interpretação social, o que me gerou muitos prejuízos e dificuldades em compreender as intenções dos outros, além de ter desenvolvido depressão e ansiedade. Foi quando hiperfoquei em música e desenho, reproduzia rostos com precisão e compunha melodias e tocava instrumentos como se já soubesse como fazê-los. A escrita tornou-se minha voz até hoje, comunico-me melhor no papel. Atualmente, há duas coisas em minha vida que ainda são difíceis para mim: a interação e a comunicação, e a restrição a rotinas ou rituais muito específicos que precisam ser seguidos.
Vida Adulta: Shutdowns, Água e a Luta pela Comunicação
Hoje, dois desafios moldam minha rotina:
Interação social: Não é falta de vontade — é uma barreira sensorial.
Rituais rígidos: Mudanças inesperadas me paralisam.
Ao longo desta série, irei falar sobre esses aspectos. Começarei falando sobre a angústia que sinto por não saber me comunicar de forma assertiva e sobre a sobrecarga que sinto no dia a dia. Consigo dar conta de muitas coisas, sou boa no que faço; meu dia é hiperestimulante e repleto de hiperfocos, e muitas vezes não consigo parar para fazer pausas. Mas quando paro, só a água me regula por isso, adoro tomar banho. Minha cabeça funciona como se fosse um computador: sinto a necessidade de que tudo ocorra conforme foi estipulado por mim, e quando algo fora do planejado acontece, consigo me ajustar, mas dependendo da situação, demoro mais. Se uma pessoa invade meu espaço impondo sua perspectiva ou seu modo de fazer e pensar, fico tensa e ansiosa; lidar com essas situações é muito mais difícil do que resolver problemas com um sistema ou objeto, pois se for algo relacionado a outra pessoa, já me gera uma angústia imensa e uma complexidade de resolução. Sinto como se precisasse resolver tudo naquele mesmo instante; minha cabeça começa a girar incessantemente e, diante disso, acabo me calando, ficando apática, monosilábica, dizendo sim e não, “tô” ou “não tô”. Nesses momentos, eu me fecho é um fechamento angustiante, um grito interno, uma vontade absurda de me desconectar do mundo, como se tivesse cola na boca e não pudesse gritar. Quando essa sobrecarga ocorre, o que se chama, no autismo, de shutdown ou shutdown emocional acontece com muita frequência, quase todos os dias. Nesses momentos, tomo banho, ouço música, fico no meu canto, pois a sensação é de deslocamento. Foi o que fazia quando criança: corria para dentro do armário ou para o morro, e hoje, sendo adulta, corro para o banheiro, tomo banho, coloco minha música e vou para o meu quarto.
Para Autistas e Aliados: Acolhimento no Silêncio
Se você é autista:
Tudo bem recuar. Encontre seu "armário" um banho, um desenhar, um canto escuro, uma música. Você não precisa justificar sua necessidade de pausa.
Se convive com um autista:
Respeite o shutdown. Não force interações. Um "está tudo bem, estou aqui" basta. Respeite esse momento, pois é um período de dor uma dor que rasga por dentro, que desconecta o autista da vida.
Essa é a minha história, minha maneira de viver e de enfrentar os desafios diários, com a certeza de que cada um de nós, autistas, possui uma singularidade que nos torna únicos e especiais.
Celebremos nossa singularidade.
Próximos Temas: Mergulhando na Neurodiversidade
Nos próximos blogs, pretendo explorar uma série de temas que fazem parte da minha vivência diária e que refletem a complexidade de existir dentro do espectro autista. Quero falar sobre a sobrecarga sensorial que muitas vezes me leva ao shutdown, explicando também como ocorrem meus meltdowns e de que maneira isso impacta meu dia a dia. Abordarei, ainda, os desafios e aprendizados presentes nos meus relacionamentos sejam eles familiares, de amizade ou amorosos destacando as nuances que cada interação carrega.
Também vou me aprofundar na minha necessidade por rotinas e nas fixações que fazem parte do meu funcionamento, além de compartilhar como é viver com TDAH, superdotação, altas habilidades e transtornos de aprendizagem, enfrentando desafios e celebrando superações. Quero falar sobre os prejuízos que o TDAH traz para a minha vida, e de que forma o perfeccionismo, ao mesmo tempo em que me impulsiona, também me dificulta.
Dentro do meu mundo particular, abordarei também o motivo pelo qual evito fofocas e conversas banais, ressaltando o valor que dou à autenticidade e ao conteúdo significativo nas interações.
Sinta-se à vontade para sugerir outros temas que você considere relevantes ou que despertem sua curiosidade.
Estou sempre aberta a novas ideias e pronta para compartilhar mais sobre a minha jornada.
Com carinho,
Aline Vicente.
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